quinta-feira, 30 de maio de 2013

A degradação de um Estado segundo Platão

As análises de Platão sobre a corrupção do Estado  são sustentadas pelo princípio da correspondência perfeita entre a alma e os costumes do individuo, e as instituições do Estado: os governos e as constituições, ele diz, "não provêm de um carvalho ou de uma rocha", mas, "dos costumes morais que existem no Estado".

As formas corrompidas do Estado enumeram-se na seguinte ordem: 1) a timocracia, que é uma forma de governo que se apoia sobre o reconhecimento da honra como valor supremo; 2) a oligarquia que é uma forma de governo fundada sobre a riqueza entendida como valor supremo (e, portanto, em mãos dos poucos que detêm as riquezas); 3) a democracia, que Platão entende no sentido pejorativo de demagogia; 4) a tirania, que representa, para o nosso filósofo, um verdadeiro flagelo da humanidade.

O Estado ideal que nos é descrito por Platão é uma "aristocracia" no sentido mais forte e mais significativo do termo, vale dizer, um Estado guardado e governado pelos melhores por natureza e por educação, fundado sobre a virtude como valor supremo e caracterizado pela primazia, nos seus cidadãos, da parte racional da alma.

A "timocracia" (que Platão identificava substancialmente com o regime político espartano) rompe já esse equilíbrio essencial do Estado perfeito, porque substitui a honra à virtude, buscando, por assim dizer, o efeito sem a causa. Nessa forma de Estado, a mola da vida pública é a sede de honras e, portanto, a ambição, enquanto na vida particular já prevalece, habilmente escondida e mascarada, a sede de dinheiro. Na alma do cidadão desse Estado, acontece já um desequilíbrio entre as diversas faculdades, entre a parte racional e as duas partes irracionais, até que a parte mediana (a "inflamada" ou "irascível") não acabe por predominar sobre as outras.




A "oligarquia" é, para Platão essencialmente uma "plutocracia". Ela assinala uma decadência ulterior dos valores, porque o senhorio da riqueza, bem puramente exterior, se substitui ao da virtude. Apenas os ricos gerem a coisa pública; a virtude e os bons são postos na sombra e a pobreza e o pobre são, sem mais, desprezados. Torna-se fatal o conflito entre ricos e pobres e permanece um conflito sem possibilidade de mediação (por falta de um valor comum que seja superior à riqueza e à pobreza, pois a virtude é transcurada tanto pelos ricos como pelos pobres). Assim, gastando a vida em fazer dinheiro, o homem desse Estado rompe com o tempo o equilíbrio da sua alma e acaba por deixar dominar a parte inferior, a concupiscível.

A "democracia" que Platão descreve é o estágio que, no avanço da corrupção, precede e prepara a tirania. Como observamos, o leitor moderno não deve deixar-se enganar pelo nome, pois o que o nosso filósofo tem em mente é a demagogia e o aspecto demagógico da democracia. A insaciabilidade de riqueza e dinheiro leva, pouco a pouco, na oligarquia, a não se cuidar de outra coisa a não ser da riqueza. Os jovens, crescendo sem uma educação moral, começam a gastar sem medida (o sentido de poupança do pai não tem valor para eles, pois encontram riquezas já acumuladas) e se abandonam indiscriminadamente a todo gênero de prazer (pois perderam o sentido da medida que pode derivar somente de valores superiores). Dessa maneira, os ricos detentores do poder se enfraquecem, mesmo fisicamente, até o momento em que os súditos pobres tomam consciência do que está acontecendo e, na primeira ocasião propícia, tomam o poder e instauram o governo do povo, proclamando a igualdade dos cidadãos (distribuindo a igualdade seja aos iguais, seja aos desiguais, diz Platão), e distribuindo as magistraturas com o sistema do sorteio. O Estado fica cheio de "liberdade": mas é uma liberdade que, desvinculada de valores, degenera em licenciosidade. Cada um vive como lhe apraz e, se quiser, pode participar também da vida pública. A justiça se faz tolerante e mansa; e mesmo as sentenças passadas em juízo muitas vezes não se executam. Quem quiser fazer carreira política não necessita ter natureza adequada, educação e competência: basta que "afirme ser amigo do povo".



Nesse Estado, no qual a liberdade é licença, também o indivíduo mostra as mesmas características. Para os jovens, tornam-se soberanos os desejos e prazeres. Os "raciocínios impostores" fecham a entrada e tiram toda possibilidade de acesso aos discursos mais antigos que "querem prestar auxílio ou também impedem a entrada das embaixadas enviadas pelo bom conselho". Assim, com esses "raciocínios", é banido o respeito, qualificado como tolice; é expulsa com insultos a temperança, qualificada de falta de virilidade; e a moderação e a medida no gastar são consideradas avareza. Analogamente são exaltadas as qualidades negativas opostas: a arrogância é chamada de boa educação, a anarquia é dita liberdade, o desperdício do dinheiro público é considerado liberalidade e a impudência é tida como coragem. Assim a vida desse jovem torna-se sem ordem e sem lei, dedicada inteiramente aos prazeres.

Da democracia (entendida no sentido acima descrito) deriva diretamente a tirania, justamente em razão da insaciável sede de liberdade. O excesso de liberdade (que é licenciosidade), faz cair no seu oposto, ou seja, na servidão.

A doença que corrompe a democracia deve ser buscada na categoria dos ociosos que gostam de gastar sem medida. Os mais ousados desses arrastam os outros e, aproveitando-se da liberdade, dominam com a palavra e a ação e não toleram quem fala diferentemente. Com métodos diversos buscam tirar dos ricos a sua riqueza procedendo de tal maneira que alguma vantagem resulte para o povo, mas guardando para si a parte mais conspícua. E quando entre esses nasce um homem que se destaque e consiga tornar-se um líder reconhecido pelo povo (um demagogo), esse logo se tornará tirano, ou seja, não somente acusará injustamente os adversários, mas os exilará ou até os fará executar. Chegado a esse ponto, não resta outro caminho a esse tal u não ser ou deixar-se liquidar como vítima da vingança dos adversários ou, justamente, transformar-se de chefe em tirano e assim tornar-se "de homem em lobo". Primeiramente se mostrará sorridente e gentil; mas logo será obrigado a tirar a máscara. Deverá promover guerras contínuas para que haja necessidade de um comandante. Em seguida, "purgará" o Estado, eliminando todos aqueles elementos que, de alguma maneira, o perturbam; e os eliminados serão justamente os melhores. O tirano acabará por viver entre gente pouco recomendável e, finalmente, será odiado por aqueles mesmos que o levaram ao poder. No regime da tirania, não é tirânico somente aquele que está na chefia do Estado, mas o são também os cidadãos. E eis a característica do cidadão tirânico: a liberdade sem freio que é, na realidade, anarquia e licença, à qual ele se abandona, deixa livre curso aos desejos e amores selvagens e fora da lei, aos desejos terríveis que estão presentes em cada um de nós, mas que a razão e a educação dominaram e que afloram somente nos sonhos.


Tornando-se vítima desses desejos, ele lança fora de si todo resíduo de temperança, não se detém mais diante de nada e quer dominar não somente sobre os homens, mas também sobre os deuses, e atinge o fundo quando de todo se abandona à embriaguez do vinho, aos prazeres do sexo e à depressão psíquica.É claro que tais homens são incapazes de relações normais com outros homens, são capazes apenas de mandar ou de obedecer, e tornam-se alheios às pessoas com as quais se encontram não apenas tenham obtido e que desejam delas.A tirania é, assim, o Estado da servidão absoluta; e esta não é somente a servidão dos súditos ao tirano, mas é servidão total (nos súditos e no tirano) da razão aos instintos baixos: a servidão exterior não é senão a consequência e a manifestação da servidão interior.

3 comentários:

  1. Há cerca de 25 séculos Platão faz um raio-x tão atual da sociedade e da política . Dê um certo modo , ele anteviu o uso político da reengenharia social analisando a forma com que o povo se corrompe e de como um 'líder político' pode tirar proveito disso.

    Lembrando que parece que a solução para encontrar a 'forma ideal de governo' , sem defeitos , parece impossível .

    Creio que quando Platão elaborou sua 'república', não como uma proposta de governo , num exercício dialético com seus interlocutores para chegar a uma inevitável conclusão de que um governo ideal , por ser perfeito , seja impossível de se concretizar .

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    1. Platão popôs dois modelos de utópias, um A república e o outro As Leis. Em A república ele propunha abolir a propriedade privada não para a população, mas para a elite dirigente, em que sua mente deveria estar voltada para o transcendente, desgarrando do material.
      Disse Werner Jaeger em sua obra Paidéia que os guardiões estavam mais para uma ordem monástica medieval do que uma burocracia coletivista.
      Continuaria a propriedade privada, mas apenas para o povo.



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    2. Já foi comentado ( Will Durant em 'História da filosofia )que essa forma do governo , proposta por Platão teria chegado perto na Idade Média , no áuge do poderia da Igreja onde a população era classificada 'oficiosamente' como 'Laboratores , bellatores et oratores' ( trabalhadores , guerreiros e oradores ).

      Estes últimos seriam membros da Igreja que não passavam pelo sufrágio para conseguir seus cargos mas pelos seus talentos na administração eclesiática , sabedoria , meditação e simplicidade . Sem preocupações familiares para não se perderem em problemas da carne e se concentrarem nos seus misteres .

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