quarta-feira, 27 de agosto de 2014

A Angustia humana

A proposta de Kierkegaard  está refletir este tema emerge da possibilidade de um enfoque nos perfis psicológicos que habitam a condição humana, sobretudo no que se refere à articulação entre a angústia e o desespero.  O livro "O Conceito de Angústia", em que o próprio Kierkegaard, ironicamente insiste afirmar que se trata de uma “simples investigação psicólógico-demonstrativa, direcionada ao problema dogmático do pecado hereditário”.
Quais as implicações da angústia e do desespero no processo de tornar-se um si mesmo? Em que sentido a fuga da angústia implica o desespero? Mediante o entendimento de que o indivíduo somente é livre quando se responsabiliza por suas escolhas, a nossa hipótese é de que tanto a angústia quanto o desespero são de sua única responsabilidade, mesmo que ele não saiba. Por outro lado, se o desespero é a doença mortal (perda da liberdade) a angústia pode ser até o remédio, ou a condição da liberdade. Avaliaremos as articulações existenciais entre o desespero, a angústia, a possibilidade de individuação e a relação que o autor estabelece com a idéia do juízo e da graça. Nessa perspectiva, se o desespero é, segundo o autor, uma doença que atualmente atribuíamos ao self, veremos em que medida a sua definição antropológica aponta a cura para o desespero. Finalmente, veremos em que medida a angústia exerce algumas implicações decisivas sobre a liberdade e a responsabilidade do indivíduo, articuladas no horizonte do sentido para a existência.
No primeiro capítulo de O Conceito de Angústia, Kierkegaard quer abordar a angústia precisamente por este ponto de vista, busca explicar de “modo retroativo, na volta à sua origem, o pecado hereditário”. Diante do pressuposto de que o pecado entrou no mundo como culpa, nosso autor deseja investigar na constituição do ser humano, as condições de possibilidade da liberdade, a angústia, tendo em vista o problema do pecado hereditário. No entanto, o autor enfatiza que o tema do pecado somente pode ser tratado pela dogmática. Nessa perspectiva, cabe a psicologia analisar o que se passa antes do “primeiro pecado”, a queda, que em Adão é precisamente o salto qualitativo, bem como a possibilidade de conexão entre Adão e o indivíduo posterior.
Na parte 2 do primeiro capítulo, "O conceito de primeiro pecado", Kierkegaard ressalta que nas concepções teológicas tradicionais o pecado de Adão condiciona à pecaminosidade e como consequência, pressupõe a pecaminosidade como condição. Sob este aspecto, salienta Kierkegaard que “se assim fosse, então Adão realmente ficaria fora do gênero humano, e este começaria não com ele, mas teria um começo fora de si mesmo, o que contraria qualquer conceito”. Para compreendermos essa afirmação é preciso entender que o primeiro pecado é entendido por Kierkegaard como uma determinação qualitativa da possibilidade da geração. Nesse sentido, Adão:
[...] "não é essencialmente diferente do gênero humano, pois nesse caso absolutamente não há gênero humano; ele não é o gênero humano, pois nesse caso também não haveria gênero humano. Ele é ele mesmo e o gênero humano. Portanto aquilo que explica Adão também explica o gênero humano e vice-versa."
Ao afirmar que Adão é o primeiro homem e, ao mesmo tempo, é ele mesmo e o gênero humano, Haufniensis está indicando que a angústia está presente em cada indivíduo e em todo o gênero humano. Vejamos o modo como ele aborda esta questão, observando algumas distinções necessárias para que haja uma compreensão quanto as suas críticas ao modo como, em seu tempo, eram discutidas as questões sobre o pecado.
Na parte 3 do primeiro capítulo, o conceito de inocência, Kierkegaard enfatiza que em Adão, a inocência enquanto ignorância, inciência, ou desconhecimento entre o bem e o mal, ocorre precisamente pelo fato de que Adão está em plena harmonia com Deus. Antes da queda, “o espírito está como que dormindo”.
Kierkegaard repetidas vezes enfatiza que a inocência é ignorância. Na parte 5 do primeiro capítulo, O conceito de angústia, ele recorda que no livro do Gênesis, Deus disse a Adão: “mas não comas os frutos da árvore da ciência do bem e do mal”. Neste ponto, o psicólogo Kierkegaards traz um questionamento extraordinário sobre a capacidade de compreensão por parte de Adão, qual seja: [...] “é óbvio que Adão propriamente não entendeu essas palavras, pois como haveria de entender a distinção entre bem e mal, já que esta distinção só viria com o gozo?” E ainda:
[...] "A inocência pode, afinal de contas, falar. Por conseguinte possui na linguagem a expressão para todo o espiritual. Nessa medida, basta supor que Adão falou consigo mesmo. Então desaparece da narrativa a imperfeição de que outro fala a Adão de algo que este não entende. Não se segue, certamente, num sentido profundo que, se Adão fosse capaz de falar, seria capaz de compreender o enunciado. Isto é aplicável, antes de tudo, à distinção entre bem e mal, que está decerto na linguagem, mas é apenas para a liberdade."
Sob este aspecto percebemos que a reflexão de Kierkegaard se volta para as questões da linguagem e do conceito. Adão houve, mas não compreende pelo fato de que em estado de inocência ele ainda não possui conceitos.
Kierkegaard destaca que em Adão a angústia emerge da pura possibilidade, ou seja, há em Adão a sensação de que há algo para fazer, mas, no entanto, ele desconhece. O futuro, enquanto desconhecido, é nada, mas é precisamente o nada que faz nascer a angústia. Diferente do medo que tem relação com algo determinado, conhecido [...] “a angústia é a realidade da liberdade como possibilidade antes da possibilidade”. De modo extremamente sensível, o autor descreve toda a ambigüidade que há na angústia: “A angústia é uma antipatia simpática e uma simpatia antipática”.
Diante disso, a partir do pressuposto de que o salto é precisamente ser capaz de liberdade, Kierkefaard salienta que Adão salta da essência para a existência, do mesmo modo que da inocência para a culpa. No que se refere à existência o salto é inexplicável; contudo a nova qualidade que, segundo o autor, é a determinação qualitativa, somente é possível com o primeiro salto. Com o salto, segue a queda : pecado:
[...] "como Adão perdeu a inocência pela culpa, assim a perde todo e qualquer homem. Se não foi pela culpa que a perdeu, tampouco foi a inocência o que perdeu, e se ele não era inocente antes de se tornar culpado, então jamais se tornou culpado."
Nosso autor repetidas vezes afirma que o homem é uma síntese do psíquico e do corpóreo; entretanto [...] “uma síntese é inconcebível quando os dois termos não se põem de acordo com um terceiro. Este terceiro é o espírito”. A síntese mostra precisamente a diferença (humano/Deus); contudo, Kierkegaard enfatiza que, no indivíduo, a síntese somente é possível mediante o salto.
Nessa perspectiva, é possível perceber a crítica de Kierkegaard quando assegura que a pecaminosidade foi posta no homem. Conforme o autor, sensualidade não é pecaminosidade justamente pelo fato de que a pulsão sexual não é um mero instinto, uma vez que ela tem um telos-fim: “crescer e multiplicar”. Sob este aspecto, podemos compreender que a crítica aos pressupostos da teologia tradicional emerge do fato de que o “fruto do conhecimento” não aparece enquanto diferença absoluta e sim que a distinção entre o bem e o mal se dá pelo gozo. Nesse sentido, no instante em que o pecado é posto, a temporalidade passa a ser pecaminosidade e dessa determinação de pecaminosidade o pecado é hereditário no homem.
Em O Conceito de Angústia a crítica fundamental, que será posteriormente complementada nas Migalhas Filosóficas, ocorre pelo fato de que é com o “salto” da inocência para o “pecado” (enquanto condição de possibilidade do indivíduo tornar-se um si-mesmo), ou seja, com o salto da essência para a existência, o indivíduo é lançado para a “não-verdade”. A “não verdade” é precisamente o desespero, a má relação com o espírito, pois a perda da verdade é histórica, aconteceu no tempo (existência).
Segundo Kierkegaard, diferente dos animais, o homem está determinado como espírito. Sob este aspecto, podemos compreender que o desespero é, segundo nosso autor, carência de interioridade, ou seja, a negação do eterno no homem. Ora, se o homem é uma síntese do psíquico e do corpóreo e por sua vez a síntese somente ocorre na relação dos dois termos com um terceiro, então, segundo Kierkegaard, o desespero consiste na má relação com o espírito. Na relação dual (psíquico/corpóreo) a síntese não se efetiva e o desespero ocorre diante da incomensurabilidade entre finitude e infinitude, necessidade e possibilidade. No indivíduo, a carência de interioridade é uma manifestação do desespero, a doença mortal que caracteriza a perda da liberdade, cujo sintoma é a falta de sentido para a existência. Existência frustrada, para Kierkegaard, é desespero.
A angústia, enquanto possibilidade de liberdade, pode ser o antídoto, mas ela é também a vertigem diante do desconhecido, o futuro. É precisamente vertigem o que sentimos quando olhamos para o abismo e vemos apenas a fundura, o nada. Nessa perspectiva, percebemos que é diante do nada (desconhecido), o futuro, que a angústia se relaciona com o possível e, nesse sentido, ela está intimamente ligada ao nosso horizonte de liberdade. Escolher o “eu”, no sentido kierkegaardiano, implica um duplo movimento, ou seja, inicialmente voltar-se sobre si mesmo, pois é nesse movimento que se abre a possibilidade do indivíduo dar-se conta da própria incompletude. Neste ponto, compreendemos que é preciso inicialmente reconhecer o desespero, identificar a falta que não cessa de se inscrever e aceitá-la como parte de um processo dialético de libertação. Sob este aspecto podemos inferir que no desespero o medo da liberdade mobiliza todas as nossas resistências de viver sob a responsabilidade das próprias escolhas.
Ao afirmar que a angústia é a realidade da liberdade como possibilidade, Kierkegaard aponta para a contingência, pois sempre há a possibilidade de algo acontecer de uma maneira ou de outra. Não sabemos o que nos espera, mas é preciso escolher. Segue daí a dimensão da responsabilidade, pois a nossa falibilidade se expressa na justa proporção em que lidamos com o contingente.
Nessa perspectiva, é possível perceber a dimensão antropológica presente nesta obra. Kierkegaard demonstra que o sentido para a existência emerge de nossos próprios abismos, implica paixão, interioridade. A paixão é precisamente a fé como uma espécie de incerteza objetiva.
Neste ponto é possível pressupor que, segundo o nosso autor, a fé enquanto interioridade apaixonada pode ser o remédio capaz de combater o desespero, cujo sintoma é o tédio e a melancolia, tão presentes em nossos dias.
Assim, permito-me finalizar com as palavras de Kierkegaard quando, no final do quinto capítulo, enfatiza a relação desta obra com a idéia do juízo e da graça: “Com o auxílio da fé a angústia educa a individualidade a repousar na Providência. [...] "Por isso, quem se educa pela angústia em relação à culpa, só há que encontrar repouso na reconciliação”.

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