quarta-feira, 9 de abril de 2014

Sobre a falsa felicidade e o desespero humano

a) O desespero que se ignora ou a ignorância desesperada por ter um eu, um eu eterno
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Este estado, que a justo título se designa como desespero, e que não deixa de o ser, exprime por isso mesmo, mas no bom sentido da palavra, o direito de chicana da Verdade. Veritas est index sui et falsi (verdade é índice de si mesma e da falsidade). Mas este direito de chicana é tido por menos que o seu valor, assim como, ordinariamente, os homens estão longe de considerar como supremo bem a relação com a verdade, a sua relação pessoal com a verdade, como estão longe de concordar com Sócrates em que a pior das infelicidades é estar em erro; neles, o mais das vezes, os sentidos têm mais força do que a intelectualidade. Quase sempre, quando alguém se julga feliz e se envaidece com sê-lo, ao passo que à luz da verdade é um infeliz, está a cem léguas de desejar que o tirem do seu erro. Pelo contrário, zanga-se, considera como seu pior inimigo àquele que o tenta, e como um atentado e quase um crime esse modo de proceder e, como costuma dizer-se, de destruir a sua felicidade. Por quê? Mas porque é presa da sensualidade e duma alma plenamente corporal; porque a sua vida só conhece as categorias dos sentidos, o agradável e o desagradável, e manda passear o espírito, a verdade, etc.... É porque é demasiado sensual para ter a ousadia, a paciência de ser espírito. Apesar da sua vaidade e falsidade, os homens não têm ordinariamente mais do que uma leve idéia, ou, melhor, não fazem a mais leve idéia de serem espírito, de serem esse absoluto que ao homem é dado ser; mais vaidosos e enfatuados, é certo que o são... entre si. Imagine-se uma casa, cada um de cujos andares — cave, rés-do-chão, primeiro andar — tivesse uma espécie diferente de moradores, e compare-se a vida com esta casa: pois não se veria — tristeza ridícula! — que a maior parte da gente preferiria apesar de tudo a cave!


Todos nós somos uma síntese com uma finalidade espiritual, essa é a nossa estrutura; mas quem não prefere habitar a cave, as categorias do sensual? O homem não só prefere viver nelas, mas ama-as a tal ponto que se zanga, quando lhe propõe o primeiro andar, o andar nobre, sempre vago e esperando-o — porque afinal toda a casa lhe pertence.Sim, estar no erro é aquilo que, ao invés de Sócrates, mais se teme. Fato que ilustram em grande escala extraordinários exemplos.Certo pensador eleva uma construção imensa, um sistema, um sistema universal que abraça toda a existência e história do mundo, etc., — mas se alguém atentar na sua vida privada, descobre com pasmo este enorme ridículo: que ele próprio não habita esse vasto palácio de elevadas abóbadas, mas um barracão lateral, uma pocilga, na melhor das hipóteses o cacifo do porteiro! E zanga-se se alguém ousa uma palavra para lhe fazer notar essa contradição. Pois que lhe importa viver no erro, logo que construa o seu sistema... com a ajuda desse erro.
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Que importa pois que o desesperado ignore o seu estado, se nem por isso deixa de desesperar? Se esse desespero é desvario, a ignorância ainda o torna maior: é estar ao mesmo tempo desesperado e em erro. Tal ignorância está para o desespero como está para a angústia (ver o Conceito de Angústia, por Virgilius Haufniensis 4), a angústia do nada espiritual reconhece-se precisamente pela segurança vazia de espírito. Mas, no fundo, a angústia está presente, assim como o desespero, e quando se suspende o encantamento das ilusões dos sentidos, desde que a existência vacila, o desespero, que espiava, surge.
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Ao lado do desesperado consciente, o desesperado que se ignora só está afastado da verdade e da salvação por mais um passo negativo. O próprio desespero é uma negação e a ignorância do desespero é outra. Mas o caminho da verdade passa por todas elas; aqui se verifica pois o que a lenda diz para desfazer os sortilégios: deve-se representar toda a peça de trás para diante, senão a feitiçaria não se quebra. Contudo, só num sentido, em pura dialética, o desesperado que se ignora está realmente mais longe da verdade e da salvação do que o desesperado consciente, que se obstina em sêlo; pois que, em outra acepção, em dialética moral, aquele que permanece conscientemente no desespero está mais longe da salvação, visto que o seu desespero é mais intenso. Mas a ignorância está de tal modo longe de o destruir ou de transformá-lo em nãodesespero, que, pelo contrário, ela pode ser a forma que mais riscos contém. Na ignorância, o desesperado está de certo modo garantido, mas para seu mal, contra a consciência, isto é, está sem apelo, nas garras do desespero.
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É nesta ignorância que o homem tem menor consciência de ser espírito. Mas, precisamente, esta inconsciência é o desespero, quer seja uma extinção de todo o espírito, uma simples vida vegetativa, ou então uma vida múltipla, cuja base, contudo, continua a ser desespero. Aqui, como na tuberculose, é quando o desesperado está melhor e melhor se sente, e pode dar a impressão duma saúde florescente, que o mal é mais agudo.". – Desespero Humano de Soren Kierkegaard

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